terça-feira, 14 de julho de 2009

Uma Mala com Problemas (Em construção)

Querida Mamãe:

Sou uma mala. Reconheço que sou uma mala. Uma mala com alça central, rodinhas de borracha e tranca com segredo. Uma mala inteirinha, afinal o que mais passa meses a fio no maleiro ou no alto de um guarda roupas? Cheia de roupas de inverno, cobertores que não estão em uso e roupas para as quais o manequim engordou.

Estou aqui em cima do guarda-roupas há mais de 10 meses. É absurdo como se pode acreditar que uma mala viva sem viajar, mas acreditam. Tanto acreditam que fui comprada há 4 anos, 7 meses e 18 dias e, sabem quanto tempo passei fora desta casa? 34 dias somente e isso porque me emprestaram para a vizinha que me levou no porta malas de um carro até Belo Horizonte e só voltei 16 dias depois. Veja bem: num porta-malas...eu, uma mala totalmente feita em material plastico de alta resistencia ao impacto e totalmente vedada, podendo ficar exposta a intempéries e temperaturas extremas... num porta-malas de onde não se podia ver nada. Só tomei um arzinho quando um pneu furou e tiveram que me tirar para poder pegar estepe e macaco. Foi menos de meia hora. Eu e mais duas sacolas ali na beira da estrada vendo os carros passarem, aproveitando aquela brisa do final de tarde. Depois... ah...depois fui jogada pra dentro sem nenhuma cerimonia e paff... escuridão total por mais umas oito horas.

Com o cara que me comprou, só viajei por 18 dias em quase 5 anos!!! Um absurdo sem igual que conto aqui só porque é um maldito desabafo mãe, pois eu não estou mais agüentando. Acho que ele me comprou porque não tinha onde por esse monte de roupas velhas. Não é porque queria viajar.

E eu, besta, acreditei. Quando fui comprada foi num dia de festa. Daí a dois dias eu iria para Roma e de lá, depois de 19 horas de vôo, inspeções nas aduanas e tudo a que uma mala de respeito tem direito, mais quatro horas de trem, para a cidade do modernismo, Firenze. Que ar se respira naquela cidade... cultura... história. Uma viagem agradabilíssima e irretocável. Foram dias gloriosos e eu achei que seria a primeira de muitas a que o Cérebro Brilhante me levaria. Dei ao meu dono esse nome, porque é inacreditável a falta de inteligência dele.

Em Firenze, ainda na linda estação de trem, algumas malas locais me disseram com grande orgulho que a cidade foi durante muito tempo considerada a capital da moda, berço do Renascimento italiano e uma das cidades mais belas do mundo. Cidade natal de Dante Alighieri, autor da Divina Comédia, poema no qual descreve Florença em muitas passagens, assim como alguns de seus contemporâneos florentinos célebres, que também são personagens da obra.

Já no táxi, aboletada no banco traseiro, ouvi o motorista falando ao Cérebro Brilhante que a Grande Sinagoga de Florença, que avistamos ao passar em frente, é também conhecida como Tempio Maggiore, e é considerada uma das mais belas da Europa. Disse também que Firenze alem de ser berço de seis papas, é cenário de obras de artistas do Renascimento, como Michelangelo, Leonardo da Vince e Giotto.

Bom, mas nessa viagem, desde o embarque em Guarulhos até descer na terra do papa, cruzei com inúmeras malas velhas, bolsas desmanteladas, malas de couro amarrotadas e caixas de papelão sem graça. Garbosa puxava conversa com todo mundo, me fazendo de entendida em viagens internacionais. Apesar do meu brilho e da ausência de riscos que demonstrava minha pouca experiência, minha língua voraz falava mais do que eu mesma podia acompanhar. Nas esteiras pelas quais desfilei não tinha quem não olhasse para mim com olhos de cobiça. Até os rapazes da companhia que cuida das bagagens me colocavam com carinho junto das malas das classes executivas que em geral são Louis Vuitton e Chanel.

Tinha ouvido tantas historias na fabrica onde fui feita... depois, a loja onde me compraram. Lembra da loja mãe? Ficava de frente a uma revistaria, ou melhor dizendo, uma banca de jornais. Era de lá que ficavamos ouvindo as historias de viagens distantes, de destinos insuspeitos, de praias, desertos e oásis. Cidades como Detroit, São Francisco, Nova Yorque e Madri. Amsterdan, Praga, Cidade do Cairo. João Pessoa, Campo Grande e Quixeramobim. Os guias de viagens e as revistas especializadas expostas na banca, conversavam entre si como que para nos encher de inveja.

Afora isso nunca havia viajado, como a senhora sabe, e depois dessa escapadinha para a Europa, nunca mais viajei com meu dono. Aliás, to sendo injusta. Viajei sim; na cabeça dele, nos sonhos dele. Aqui do alto fico prestando atenção as “conversinhas para boi dormir”. Tanta promessa que mais parece outra coisa. Bariloche no inverno, Fortaleza no verão e por ai vai. Besta de quem acredita nisso porque eu já acreditei e me dei mal. Basta ver o meu estado alterado.

Bom, mas voltando o assunto. Qual era mesmo o assunto?...Caramba, minha memória anda um lixo. Também não é pra menos. Fico aqui de cima sem conversar com ninguém, acho que isso acaba atrofiando o cérebro das malas. Deus meu!!

Ah, lembrei !!! Sabe o que me aconteceu de mais estranho na vida? Fui arrombada !!
Sério... arrombada...na boa... arrombada mesmo. Acredita que o pirralho, filho do Cérebro Brilhante, ficou quase duas horas com uma faca, fuçando a minha fechadura de segredo?
Pois é...fuçou tanto que não consegui segurar de tanta cócega. Abri-me. Ah...fazer o que? Abri-me e pronto. O moleque mexeu nas coisas que estão dentro de mim, fuçou e foi embora. Me deixou aberta, com a tampa só encostada e ainda esqueceu aqui dentro uma caneta; essa que estou usando agora.

Que final infeliz para uma mala...Deus meu... Agora chega. Não vai dar em nada mesmo ficar aqui reclamando. Deixa eu tirar um cochilo porque quem sabe eu acordo daqui a 10 anos na cabine de um transatlântico.

É isso mãe, vou desligar. Se por acaso um dia a senhora receber esta carta, minha vida já terá valido a pena. Espero que a senhora tenha tido mais sorte do que eu.

Beijos da sua

Sun Son Nite

(Alcy Paiva - 14/07/09)

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