quarta-feira, 15 de julho de 2009

Cântico Negro - José Régio (Colaboração de Marcos Gouveia)

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

terça-feira, 14 de julho de 2009

Uma Mala com Problemas (Em construção)

Querida Mamãe:

Sou uma mala. Reconheço que sou uma mala. Uma mala com alça central, rodinhas de borracha e tranca com segredo. Uma mala inteirinha, afinal o que mais passa meses a fio no maleiro ou no alto de um guarda roupas? Cheia de roupas de inverno, cobertores que não estão em uso e roupas para as quais o manequim engordou.

Estou aqui em cima do guarda-roupas há mais de 10 meses. É absurdo como se pode acreditar que uma mala viva sem viajar, mas acreditam. Tanto acreditam que fui comprada há 4 anos, 7 meses e 18 dias e, sabem quanto tempo passei fora desta casa? 34 dias somente e isso porque me emprestaram para a vizinha que me levou no porta malas de um carro até Belo Horizonte e só voltei 16 dias depois. Veja bem: num porta-malas...eu, uma mala totalmente feita em material plastico de alta resistencia ao impacto e totalmente vedada, podendo ficar exposta a intempéries e temperaturas extremas... num porta-malas de onde não se podia ver nada. Só tomei um arzinho quando um pneu furou e tiveram que me tirar para poder pegar estepe e macaco. Foi menos de meia hora. Eu e mais duas sacolas ali na beira da estrada vendo os carros passarem, aproveitando aquela brisa do final de tarde. Depois... ah...depois fui jogada pra dentro sem nenhuma cerimonia e paff... escuridão total por mais umas oito horas.

Com o cara que me comprou, só viajei por 18 dias em quase 5 anos!!! Um absurdo sem igual que conto aqui só porque é um maldito desabafo mãe, pois eu não estou mais agüentando. Acho que ele me comprou porque não tinha onde por esse monte de roupas velhas. Não é porque queria viajar.

E eu, besta, acreditei. Quando fui comprada foi num dia de festa. Daí a dois dias eu iria para Roma e de lá, depois de 19 horas de vôo, inspeções nas aduanas e tudo a que uma mala de respeito tem direito, mais quatro horas de trem, para a cidade do modernismo, Firenze. Que ar se respira naquela cidade... cultura... história. Uma viagem agradabilíssima e irretocável. Foram dias gloriosos e eu achei que seria a primeira de muitas a que o Cérebro Brilhante me levaria. Dei ao meu dono esse nome, porque é inacreditável a falta de inteligência dele.

Em Firenze, ainda na linda estação de trem, algumas malas locais me disseram com grande orgulho que a cidade foi durante muito tempo considerada a capital da moda, berço do Renascimento italiano e uma das cidades mais belas do mundo. Cidade natal de Dante Alighieri, autor da Divina Comédia, poema no qual descreve Florença em muitas passagens, assim como alguns de seus contemporâneos florentinos célebres, que também são personagens da obra.

Já no táxi, aboletada no banco traseiro, ouvi o motorista falando ao Cérebro Brilhante que a Grande Sinagoga de Florença, que avistamos ao passar em frente, é também conhecida como Tempio Maggiore, e é considerada uma das mais belas da Europa. Disse também que Firenze alem de ser berço de seis papas, é cenário de obras de artistas do Renascimento, como Michelangelo, Leonardo da Vince e Giotto.

Bom, mas nessa viagem, desde o embarque em Guarulhos até descer na terra do papa, cruzei com inúmeras malas velhas, bolsas desmanteladas, malas de couro amarrotadas e caixas de papelão sem graça. Garbosa puxava conversa com todo mundo, me fazendo de entendida em viagens internacionais. Apesar do meu brilho e da ausência de riscos que demonstrava minha pouca experiência, minha língua voraz falava mais do que eu mesma podia acompanhar. Nas esteiras pelas quais desfilei não tinha quem não olhasse para mim com olhos de cobiça. Até os rapazes da companhia que cuida das bagagens me colocavam com carinho junto das malas das classes executivas que em geral são Louis Vuitton e Chanel.

Tinha ouvido tantas historias na fabrica onde fui feita... depois, a loja onde me compraram. Lembra da loja mãe? Ficava de frente a uma revistaria, ou melhor dizendo, uma banca de jornais. Era de lá que ficavamos ouvindo as historias de viagens distantes, de destinos insuspeitos, de praias, desertos e oásis. Cidades como Detroit, São Francisco, Nova Yorque e Madri. Amsterdan, Praga, Cidade do Cairo. João Pessoa, Campo Grande e Quixeramobim. Os guias de viagens e as revistas especializadas expostas na banca, conversavam entre si como que para nos encher de inveja.

Afora isso nunca havia viajado, como a senhora sabe, e depois dessa escapadinha para a Europa, nunca mais viajei com meu dono. Aliás, to sendo injusta. Viajei sim; na cabeça dele, nos sonhos dele. Aqui do alto fico prestando atenção as “conversinhas para boi dormir”. Tanta promessa que mais parece outra coisa. Bariloche no inverno, Fortaleza no verão e por ai vai. Besta de quem acredita nisso porque eu já acreditei e me dei mal. Basta ver o meu estado alterado.

Bom, mas voltando o assunto. Qual era mesmo o assunto?...Caramba, minha memória anda um lixo. Também não é pra menos. Fico aqui de cima sem conversar com ninguém, acho que isso acaba atrofiando o cérebro das malas. Deus meu!!

Ah, lembrei !!! Sabe o que me aconteceu de mais estranho na vida? Fui arrombada !!
Sério... arrombada...na boa... arrombada mesmo. Acredita que o pirralho, filho do Cérebro Brilhante, ficou quase duas horas com uma faca, fuçando a minha fechadura de segredo?
Pois é...fuçou tanto que não consegui segurar de tanta cócega. Abri-me. Ah...fazer o que? Abri-me e pronto. O moleque mexeu nas coisas que estão dentro de mim, fuçou e foi embora. Me deixou aberta, com a tampa só encostada e ainda esqueceu aqui dentro uma caneta; essa que estou usando agora.

Que final infeliz para uma mala...Deus meu... Agora chega. Não vai dar em nada mesmo ficar aqui reclamando. Deixa eu tirar um cochilo porque quem sabe eu acordo daqui a 10 anos na cabine de um transatlântico.

É isso mãe, vou desligar. Se por acaso um dia a senhora receber esta carta, minha vida já terá valido a pena. Espero que a senhora tenha tido mais sorte do que eu.

Beijos da sua

Sun Son Nite

(Alcy Paiva - 14/07/09)

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Dois Quarteirões depois da Caps Lock (Em construção)

No meu teclado mora uma formiga. Dessas pequenas que não se sabe ao certo se faz mal ou bem quando misturada ao café com leite. Todos os dias, quando ligo o computador, ela sai lá de dentro sonolenta e atrapalhada. Corre por sobre o teclado, entra aqui e ali pelas frestas entre as teclas e eu tomo cuidado para não esmaga-la porque também estou dormindo ainda. Depois de algum tempo, desaparece mesa afora e as vezes a encontro tentando ler os papeis impressos. Não me parece que goste de manuscritos.

Fico pensando no barulhão que devo fazer ao acionar das teclas lá dentro e confesso que algumas vezes aperto devagar a tecla F11 antes de ligar o computador. É que ela deve morar entre a Print Screen e a F12; sempre a vejo saindo de lá. Fico imaginando ela dando o seu endereço residencial para as colegas.

Bom, mas o fato é que nunca havia imaginado que o teclado fosse um condomínio de formigas, até vira-lo ao contrario num dia em que a tecla Num Lock se recusava a funcionar. Saíram dúzias de dez pequenas formigas alem de pedaços minúsculos de pão ou coisa parecida e vários cabelos brancos. Não tinha me dado conta também de que meus cabelos estivessem caindo.

Depois da indignação pelos cabelos e casquinhas de pão levadas para o interior do teclado, fiquei pensando na sociedade de formigas que se havia montado bem na minha frente, sem que eu me desse conta. Talvez a formiga primeira tivesse mandado buscar na cidade dela as suas parentes dizendo que havia adquirido, aqui na capital, um bairro inteiro e que era preciso habita-lo antes que outras famílias o fizessem.

A formiga que eu via não deveria ser a mesma. Também seria impossível distinguir quem era quem e elas devem ter treinado para evitar que eu descobrisse que ao invés de uma formiga solitária, todo um clã numeroso habitava no teclado. Depois da descoberta, passei a prestar mais atenção nas suas atividades.

Lá pelas 10 e tanto da manhã o sol bate na minha mesa de trabalho e, não sei se é porque descobriram que já sei do seu segredo, se é porque nessa época do ano o sol entra numa inclinação ideal para a saúde das formigas ou se é só porque agora percebo que elas estão por ali, mas o certo é que muitas delas saem como que para passear. Algumas saem aos grupos e penso que talvez seja uma excursão da escola infantil até algum parque de diversões ali próximo.

Sei que serei motivo de riso se essa história se espalhar mas acho que me faz bem ao ego ser um benfeitor para aquelas formigas. Talvez até mereça uma praça com meu nome ou um lugar de destaque em suas orações. Num mundo onde não se pode ver uma bichinha dessas que logo se corre para mata-las, fico eu acobertando um bairro inteiro delas. Não admito que a faxineira encoste em minha mesa de trabalho, sob pretextos mil, alegando que a desordem que reina é justamente a organização que não se vê, porque lá sei aonde estão todos os meus papeis e se mudarem a ordem nunca mais conseguirei trabalhar direito. Por outro lado, vez por outra levo um misto-quente para comer enquanto trabalho porque é certo que algumas casquinhas irão cair para ajudar no lanchinho das formigas.

Certo dia receie que a comunidade tivesse sido descoberta quando tive que recusar o presente de um teclado sem teclas, sem frestas nem nada, eletrônico segundo me disseram. Bastava roçar o dedo sobre a letra e ela já aparecia na tela, sem barulho nenhum. Foi o que precisei para dizer não: eu disse que o barulhinho das teclas, o clank clank é que me dá a exata noção do quanto trabalho. Nessa tarefa espinhosa de recusa minha mulher me ajudou pois disse que sem o barulho ela também não saberia se estou trabalhando ou dormindo na frente do computador que ela não consegue ver com facilidade enquanto cuida da administração da casa e de tudo mais.

Às vezes me estendo até mais de duas da madrugada usando o computador e vejo uma ou outra fazendo um passeio noturno, ou talvez deva ser um guarda noturno, afinal as formigas são muito organizadas. Vez por outra penso que elas também estejam pensando em mim:

- Pô ... esse cara não se toca que já são duas da madrugada e nós precisamos dormir para acordar cedo e ir trabalhar?

- Calma querido. Você não percebe que ele está doente da cabeça. Fala até com formigas!

- É... você deve ter razão... melhor deixar esse xarope pra lá.

Ai viram pro outro lado e dormem, certos de que o deus das formigas os abençoará por serem tão compreensivas e complacentes.

Quanto a mim, continuo aqui sem entender como meus próprios cabelos vão parar dentro do teclado, uma vez que não escrevo com a cabeça sobre ele.

Vou-me Embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Texto extraído do livro "Bandeira a Vida Inteira", Editora Alumbramento – Rio de Janeiro, 1986, pág. 90
"... tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!"

Eç Queiroz, O Primo Basílio.

domingo, 24 de maio de 2009

Erva-daninha - Alcy Paiva 24/05/09

Vou crescer à sua volta, feito coisa imprestável e indesejada.
Vou ficar aos seus pés feito coisa que não se queira
Porque sou eu e não você quem decide quando devo ir,
Porque é você e não eu quem me classifica ruim assim.

Se não devo ter esperanças; o problema será meu.
Se não devo esperar nada; quem sabe nunca esperarei
Receberei qualquer enxovalho como elogio.
Se não devia estar ali dizendo que te amo;
Estarei por tanto tempo até que isso me faça mal.

Devia colocar nessa sua linda cabeça,
Que o que sinto, independe de sua vontade.
Que o que sou, independe do seu querer.
Foi você quem mudou. Foi você que negou o que sentia até então.

Não eu. Não. Eu continuarei aqui feito estação sem trem.
Ansiosa pelo roncar dos seus motores,
Pelo calor que exala de sua fronte lívida,
Pela vivacidade que me mostrastes e me apresentastes.

Fico aqui sem passagens nem passageiros.
Fico aqui aguardando o tremor em minha plataforma.
Porque me mostrastes que sou frágil, por ter-me sentido inumano sem você.
Por me ter feito ver que a felicidade dos trilhos é o peso do seu corpo que passa.

Serei erva daninha em sua horta.
Serei capim sem valor em seu jardim.
Serei, sem querer, feito praga em suas plantas.
E mesmo quando não me quiser sentir ou ver,
Lá estarei. Indesejado. Para o meu prazer.

Alcy Paiva - 24/05/09

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Adendo de Angela Paiva à poesia QUANDO EU FOR REI
22/05/09

Quando eu for REI
O bom dia se seguirá de um sorriso irmão
A ofensa sempre terá perdão
Na bondade haverá gratidão
Para qualquer cegueira, a visão
Em caso de incompetencia, copreensão
Aos iletrados, a instrução
E que todo o sentimento venha do coração.